Novo Ensino Médio: “Não se faz reforma educacional consistente, duradoura e profunda sem proteger, transformar e valorizar tanto os professores como as escolas”

Grupo de pesquisa da UPF analisa os desdobramentos da reforma do Ensino Médio e acompanha escolas-piloto do Novo Ensino Médio na região

A partir de 2022, as escolas, professores e estudantes enfrentam mais um grande desafio: a implementação do Novo Ensino Médio. De maneira geral, a reforma amplia o tempo do estudante em sala de aula, as disciplinas passam a ser por áreas de conhecimento, e promete o desenvolvimento de uma educação voltada ao mercado de trabalho. Nesse sentido, todo este processo – desde as influências políticas relacionadas à aprovação da presente reforma até o movimento implementativo nas escolas-piloto, tem sido acompanhado por um grupo de pesquisadores que fazem parte do Projeto Políticas Curriculares para o Ensino Médio, vinculado ao Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação Superior do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo (PPGEdu/UPF). O grupo acompanha as escolas-piloto do Novo Ensino Médio da 7ª Coordenadoria Regional de Educação (7ª CRE), na região Norte do Estado, com o objetivo de identificar, descrever e analisar os desdobramentos da reforma na rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul.

Principais mudanças
De acordo com os documentos curriculares, uma das principais mudanças é a ampliação da carga horária das escolas, passando de 2,4 mil horas para, pelo menos, 3 mil horas totais, garantindo até 1,8 mil horas para a formação geral básica, com os conhecimentos previstos na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), e o restante da jornada para os itinerários formativos (Matemáticas e suas Tecnologias, Linguagens e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas). Nesse viés, uma segunda mudança bastante enfatizada pela reforma é a escolha por itinerários formativos que oferecem “possibilidades” aos estudantes ajustados ao seu projeto de vida. Uma terceira alteração é a centralidade na formação técnica e profissional.

“Ensino Médio sofre alterações que responsabilizam os jovens pelo fracasso ou pelo sucesso”
Conforme o Ministério da Educação, o Novo Ensino Médio pretende atender às necessidades e às expectativas dos jovens, fortalecendo o protagonismo juvenil na medida em que possibilita aos estudantes a escolha do itinerário formativo no qual desejam aprofundar seus conhecimentos. Mas, segundo o coordenador do Projeto Políticas Curriculares para o Ensino Médio da UPF, professor Dr. Altair Alberto Fávero, que também é coordenador do PPGEdu, não é bem assim que as coisas vão evoluir.

De acordo com o professor, uma das justificativas utilizadas pelo governo para as mudanças é que os jovens se encontram desmotivados com a formação escolar oferecida. No entanto, os reformadores não falam da raiz do problema, que passa desde a precária infraestrutura até a falta de valorização da escola e dos professores. “O ensino médio sofre alterações que responsabilizam os jovens pelo fracasso ou pelo sucesso, através do grande slogan ‘protagonismo juvenil’”, observa Fávero.

O professor ressalta que os reformadores, ao proporem um Novo Ensino Médio, destacam que o modelo atual não corresponde aos desafios do tempo presente, principalmente sobre as transformações ampliadas pelas novas tecnologias. No entanto, este olhar é muito simplista. “A transformação não está somente associada às tecnologias ou ao uso de plataformas digitais. Isso seria reduzir a educação ao consumo individualista da sociedade e aos grupos empresariais que instrumentalizam a escola”, comenta o professor.

Reforma tem que ir além da tecnologia e da preparação para o mercado de trabalho
Para o grupo de Pesquisa, os desafios que se colocam à Educação de modo geral e ao Novo Ensino Médio de forma mais pontual são imensos, complexos e problemáticos. O grupo acredita que os principais desafios para o presente e futuro envolvem quem acolhe e ensina os estudantes. “Não se faz reforma educacional consistente, duradoura e profunda sem proteger, transformar e valorizar tanto os professores como as escolas. Proteger não no sentido corporativista, mas na direção de compreender a centralidade do professor no processo educativo. Não se faz educação de qualidade, escola de qualidade e formação de qualidade sem bons professores que, por sua vez, também precisam se atualizar, estarem abertos aos novos desafios e as transformações que estão em curso”, analisa o doutor em Educação.

O professor utiliza o estudo do autor Christian Laval (2004) para enfatizar que a escola não é uma empresa, os alunos não são clientes, o conhecimento não é produto e os professores não são simples funcionários que atendem as demandas dos clientes. “Os professores são profissionais da educação, responsáveis por fazer a mediação entre o passado e o futuro (Hannah Arendt, 2003), entre a singularidade da família e o bem comum compartilhado, imprescindível para uma vida democrática”, afirma.

“Há desafios práticos, do cotidiano da escola e da comunidade educativa”
 A escola e os processos educativos ao se omitirem ou negligenciarem essa dimensão formativa, colocam em risco a própria ideia de democracia. Conforme o coordenador do grupo de pesquisa da UPF, a escola não pode e não deve ser transformada em uma empresa. “Ela não pode ser colocada a serviço de interesses privados, principalmente econômicos. Negar aos jovens essa compreensão significa roubar-lhes a oportunidade de compreender o mundo em suas múltiplas dimensões. O discurso reformista é incoerente quando transforma a educação em um modelo economicista, exploratório e sobretudo incapaz de fomentar uma aprendizagem humanizadora, sensível e comprometida com a realidade social”, aponta o professor.

Para além dessa compreensão ampla e profunda da educação, o professor salienta que há desafios práticos, do cotidiano da escola e da comunidade educativa. “A escola tem sérios problemas de infraestrutura, de acesso à internet de qualidade, de construções mais adequadas para atender às novas demandas formativas, de funcionários qualificados para setores estratégicos de formação, de professores bem remunerados, de políticas de carreira que tornem a profissão docente atrativa, de coordenadores e gestores qualificados para organizar os fluxos de forma democrática e produtiva”, enfatiza.

O professor compreende que todos estes desafios não serão enfrentados com fórmulas simplificadas de parceria público e privado. “O Estado não pode se desresponsabilizar de suas obrigações constitucionais cedendo aos caprichos de grupos corporativistas empresariais que veem na educação uma forma de ganhar dinheiro”, alerta.

4 desafios no processo de implantação do Novo Ensino Médio
O grupo de pesquisa aponta alguns desafios que já aparecem nas análises feitas sobre a implantação do Novo Ensino Médio.

1 – Período de escolas piloto deu-se em meio a pandemia:
Muitos estudantes não tiveram condições de acompanhar adequadamente o ano letivo, em função da pandemia. Pelo fato de as escolas não estarem preparadas para uma educação virtual em um período pandêmico, acabaram por improvisar muitas coisas. E uma mudança estrutural como é o Novo Ensino Médio, não pode ocorrer de modo improvisado.

2 –Reforma exige investimentos para escolas adaptarem suas estruturas:
Os jovens estarão mais tempo na escola, isso exige uma estrutura ampla e bem preparada. Os itinerários estão propondo projetos, oficinas, laboratórios, espaços abertos para a realização das experiências educativas. Por enquanto, nota-se que os investimentos públicos ainda são muito tímidos, sazonais e restritos a algumas escolas. O risco é que as escolas acabem mais uma vez improvisando e não oferecendo espaços adequados para professores e estudantes.

3 – Situação dos professores da rede estadual:
Foram praticamente sete anos sem aumento salarial e a medida de aumento anunciada recentemente pelo governo estadual é vista com desconfiança por muitos professores, porque o cálculo não atinge todos os docentes. Além disso, um grande número de professores está atuando em regime de contrato temporário, que significa uma remuneração muito menor, insegurança quanto ao futuro profissional, pois o contrato tem prazo de vigência, isso gera poucos vínculos entre o professor e a escola. Cabe ressaltar, no entanto, o empenho dos professores e gestores das escolas públicas para a implementação do Novo Ensino Médio e uma educação pública de qualidade.

4 – Escolas públicas x escolas privadas:
No Brasil, cerca de 10% das matrículas do ensino médio estão nas escolas privadas. Na região de Passo Fundo, o percentual é um pouco maior, mas não chega a 15%. Percebe-se que essas instituições já estão anunciando há algum tempo que estão preparadas para o Novo Ensino Médio. A princípio, pode-se dizer que estas instituições possuem mais condições de se adequarem àquilo que é estabelecido pela reforma. No entanto, a preocupação é com os 85% que frequentam as escolas públicas, que podem não ter seu direito à educação garantido, se não houver investimento financeiro e de recursos humanos para tal.

Sobre o Projeto de Pesquisa Políticas Curriculares para o Ensino Médio UPF
O Projeto de Pesquisa Políticas Curriculares para o Ensino Médio foi institucionalizado em 2019 pelo PPGEdu/UPF, por meio do Grupo de Estudos sobre Educação Superior. O projeto tem por objetivo fazer um processo de escuta dos sujeitos das dez escolas-piloto para a Implantação do Novo Ensino Médio, pertencentes a 7ª Coordenadoria Regional de Educação. Esse projeto já está em andamento desde março de 2020 e tem sua previsão de término em 2024. Trata-se de um amplo e profundo processo que visa escutar alunos, professores, gestores e a comunidade em geral. A equipe responsável pelo projeto já fez a aplicação de um questionário para alunos e professores das escolas envolvidas e realizou uma entrevista com gestores e coordenadores dessas instituições. A terceira etapa, que acontecerá no primeiro semestre de 2022, prevê a realização de grupos focais com professores e alunos.

Foto: Divulgação

 

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